Em Luziânia, mãe procura filha que foi doada há 30 anos
Um reencontro com alguém pressupõe a existência de uma separação prévia, de uma convivência que existiu, mas Divina Bueno, de 49 anos, busca por alguém de quem ela conhece apenas o som do choro da hora do parto. Não tem ideia dos traços do rosto da filha, nem da altura, ou do tom de sua voz, mas com uma ponta de esperança procura nos traços de jovens mulheres, indícios do bebê que entregou ainda na maternidade, em Luziânia (GO), há 30 anos.
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Sentada à mesa, a dona de casa tem os braços grudados ao corpo e começa a contar sua história em um tom de voz baixo e tímido. As lágrimas estão grudadas em seus olhos, elas não desaparecem, mas também não escorrem pelas bochechas. Ficam paradas no olhar. Fixas como a dor que ela sente todos os dias desde 28 de junho de 1990, quando doou, por engano, segundo ela, a filha recém-nascida a quem daria o nome de Rafaela.
Filha de mãe solteira e cozinheira de frigorífico, Divina se viu grávida pela segunda vez aos 19 anos. Numa casa em que havia pouco para se dividir, não aceitaram uma boca a mais para comer. Desesperada para apaziguar a relação com a mãe, se sentiu pressionada a dizer que doaria a criança quando nascesse. “Eu disse que ia dar o bebê, mas foi da boca para fora e me arrependo todos os dias de ter falado isso”, conta.
Divina tinha uma filha de 3 anos na época, mas se separou do pai da primogênita quando ela tinha 9 meses. Foi então que conheceu o pai da segunda filha. “Namoramos um ano e meio, mas ele bebia muito e, no dia que fui contar (que estava grávida), o clima não estava bom, e eu fui embora. Terminamos o namoro no mesmo dia, sem ele saber”, relembra.
Divina estava solteira, com uma filha para criar e outro bebê no ventre, quando uma conhecida da família ficou sabendo que a jovem tinha a intenção de doar a criança. A mulher se aproximou contando que sabia de um casal interessado em adotar um recém-nascido. Em algumas conversas na porta da escola onde Divina estudava, convenceu a jovem a ir ao médico, pagou consultas e exames e marcou a data do parto, sem avisar a jovem.
Os detalhes daquele dia não saem da mente de Divina. Não havia mais que quatro pessoas envolvidas no procedimento, realizado num hospital, e era perto do meio-dia quando a prepararam para a cirurgia cesariana. “Quando nasceu eu escutei os médicos falando que era uma menina e ouvi o choro dela, depois um deles disse: ‘Embrulha ela bem que ela vai viajar’, então eu não escutei e nem vi mais nada”, conta, em um relato emocionado da história. “Após o parto, eu apaguei e acordei perto das 20h naquele dia, perguntei sobre a minha filha, e a enfermeira me disse que ela tinha ido fazia tempo”, diz Divina, que acredita que a menina tenha sido entregue a um casal de Belo Horizonte.
Divina fazia planos para o dia que a filha Rafaela nascesse. Achava que poderia ter tempo de segurar a criança e dizer que não a doaria. “Mas foi tudo muito rápido, não deu tempo de pensar e reagir, eu nunca doaria ela”, conta, dessa vez em prantos.
Um dia depois, ela estava em casa. Sem a filha e com um enorme sentimento de vazio. Nenhum dia após o nascimento de Rafaela foi fácil para Divina. Todos os aniversários, datas comemorativas e reuniões de família são permeadas pelo vazio de não ter a criança que gerou. Neste ano, tomou coragem e pediu à filha mais velha, Grasi Bueno, de 33 anos, para usar a visibilidade que tem no Instagram e postar um vídeo seu, contanto sua história e desejo de reencontrar sua filha. “À época, eu era muito nova, humilde, fiquei com medo, porque o médico me falou para eu não contar a ninguém. Se a gente soubesse do destino não fazia tanta besteira”, diz.
Uma semana depois, Divina voltou ao hospital em busca de alguma pista sobre a filha, mas não encontrou o prontuário ou documentos do nascimento recente. Ao Correio, o Hospital Santa Luzia, em Luziânia, onde a menina nasceu, informou que os registros médicos são guardados por até 20 anos, é impossível achar o prontuário de Divina nos arquivos da unidade.“Nos primeiros anos, eu tinha muita esperança. A mulher que a levou tinha me prometido que, quando ela completasse 7 anos, a traria para me conhecer. Eu contei os anos, os dias e os minutos e nunca aconteceu. Atualmente, fica muito mais difícil procurar, porque essa mulher morreu há mais de 10 anos, segundo me informaram, não tenho mais como perguntar para quem ela entregou a minha filha”, diz Divina.
Anos depois, uma reviravolta na história. Divina reencontrou o pai de sua filha em uma sorveteria. “Ficamos separados 13 anos e quando o reencontrei voltamos a namorar e eu contei que havia engravidado e doado nossa filha. Me casei com ele novamente e estamos juntos há mais de 15 anos, mas ele também quer encontrá-la, pois essa é a única filha biológica que ele tem”.
Adoção à brasileira
Registrar o filho de outra pessoa ou atribuir parto alheio como próprio é crime previsto no artigo 242 do Código Penal. Já transferir uma criança ou adolescente a terceiros, sem autorização judicial, desrespeita o artigo 30 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Apesar disso, explica a responsável pela seção de adoção da Vara da Infância e da Juventude do DF, Andrea Porto Peixoto, a chamada “adoção à brasileira” continua acontecendo. Em oito anos de trabalho nessa área, ela viu casos como o de Divina repetirem-se algumas vezes.
“O ECA vem nessa via de garantir o direito da criança e do adolescente. A adoção é uma medida que visa atender a convivência familiar e comunitária dessas crianças, então uma adoção mediada pela Justiça protege todos os envolvidos, mas principalmente a criança, que não perde aspectos da própria história, que acabam se perdendo nesses processos ilegais”, explica.
No Brasil, um bebê só pode ser entregue à adoção depois que a mãe declara às autoridades o motivo pelo qual ela não pode ficar com a criança. Ao contrário da “adoção à brasileira”, essa entrega voluntária é um processo legal amparado pela lei e não é passível de punição. Nesses casos, a mulher passa por acompanhamento na Vara da Infância e da Juventude para que as autoridades conheçam seu estado emocional, psicológico, financeiro e estrutura familiar. “A mãe que deseja fazer a entrega legal de seu recém-nascido não deve ser julgada, mas amparada, porque ela está tomando uma atitude responsável e demonstrando interesse em oferecer segurança e melhores condições de crescimento à criança”, comenta Andrea.
Reprodução: Hellen Leite/ Correio Braziliense